quinta-feira, 20 de novembro de 2008

POR QUE NÃO ME ESCOLHERAM PRA SER BOM?

Na pracinha frequentada por paletós e pombos, debaixo de uma casinha improvisada por uma lona preta havia uma família de pai, mãe e sete filhos. A mãe lutava pra alimentar o recém-nascido, enquanto os filhos maiores pediam esmola na sinaleira mais próxima. O pai aproveitava a sombra pra descascar uma tangerina, olhando atentamente a tudo o que passava por ali. Uma perna amputada e uma marca de facão na altura do ombro direito eram as heranças da sua vida.



Quatro crianças divertiam-se com as moedas jogadas no chão por um velho em sua Pajero camuflada, enquanto outras tantas conversavam com o motoqueiro sobre as luzes do farol traseiro. Havia um que olhava o infinito e, ao me ver, veio em minha direção. Raquítico, olhos esbugalhados, jeito de moleque travesso e uma fala calma, mansa, ele aproximou-se.



"-Tia, tô com fome!!"



Perguntei quem era sua mãe, mas ele abaixou a cabeça. Certamente seria a da lona preta. Enquanto enfiava a mão no bolso a procura de alguns trocados, ele olhou pro céu e perguntou:



"-Por que não me escolheram pra ser bom?"



Paralisei minha última ação a tentar buscar em seus olhos alguma explicação pra tal pergunta. Ele havia falado de ser bom, mas a que espécie de bondade ele estaria questionando? Abri a boca na esperança de entrar em uma conversa com ele, todavia achei inútil explicar-lhe conceitos e filosofias. Pra ele só importava a calça suja e seus pés descalços.



Desisti das esmolas, vendo que seu pai estava encarando-me constantemente. Pedi que me acompanhasse até a esquina, onde uma lanchonete estaria pronta a dar-lhe tudo o que pedisse. O dono não ficou satisfeito ao ver seu mais novo visitante. Ele o expulsaria se não estivesse ao meu lado.



Pediu o que sua fome quis. E pediu mais para seus irmãos menores. E, quando estávamos saindo, ouvi-o resmungar.



"-Meu pai perdeu a perna por minha causa..."



Anh?



"-Tentou me salvar de morrer, e acabou sendo atropelado. Tudo por uma nota de real que vi voando na pista... Hoje se arrepende por eu ter nascido..."



"-Eu não tenho culpa..."

Abaixou seus olhos e continuou a andar, como se ruas não houvessem, barulhos não existissem... Como se não comandasse os pensamentos que voavam com ele.

9 comentários:

Nilson Barcelli disse...

O teu pequeno conto é impressionante e fabuloso.
É um olhar a vida com sentimento genuíno.
Parabéns.
Bom fim de semana, beijinhos.

Oris disse...

Gostei muito de te ler...

"Eu não tenho culpa..."

Claro que não tem.
Há sempre factores externos que interferem..., mas nem sempre da melhor maneira.

Beijitos

Cris Medeiros disse...

Hoje não estou num dia que se possa classificar como bom...

Essa história me fez chorar...

Beijocas

meus instantes e momentos disse...

Bonito e triste, singelo e dolorido.
Foi bom vir aqui.
Maurizio

Cristiana Fonseca disse...

Que realidade triste , encontramos em nossos caminhos.
Texto sensível e profundo.
Abraços,
Cris

O Árabe disse...

Não há o que dizer, acredito... só o tentar dividir a sua dor. :( Boa semana, amiga.

Fernando Amaral disse...

Sinaleira...

Nilson Barcelli disse...

É um magnífico conto.
Gostei de o ler.
Beijinhos.

redonda disse...

Triste, real e muito bem escrito.